Co-moção
[O texto/carta/crônica que publico agora não é meu. É de um amigo que se move comigo há alguns anos. Movemos-nos à distância, mas nem por isso solitários. Comovemos-nos como podemos, quando podemos. E hoje ele me moveu um tanto mais, porta adentro, nos seus sentidos. Assim, achei que o Zoé podia dividir-se um pouco e abarcar esse encontro que não é apenas do Gabriel, mas é meu também.]
O cadáver do cão
Há uma solidão inevitável. Eu
morri cercado por ela, mas não morri só. Meu corpo desabou ali mesmo, na
varanda, absolutamente só. Mas eu não morri só. Morri para que você sentisse
qualquer coisa. Para que qualquer coisa te movesse, te arrastasse. É por isso
que não morri só. Morri e quero que você
se comova.
Qual foi a última vez que você me
viu vivo? A última vez que você me tocou? Se me lembro bem, foi através de uma
grade. Ou pelo portão da casa, ou pela grade do canil. Mas essas alternativas
não importam. Agora, a minha vida não importa. É a minha morte que pede sua
atenção.
A morte foi fulminante. Morto ou
matado. Suicidado ou sacrificado. Há diferença? Sozinho ou acompanhado. Não
importa, meu amigo. O que importa é a própria morte. Talvez – no máximo – algo
mais: a surpresa e a crueza da morte. Para além disso, honestamente, nada
importa, a não ser para quem não quer ver o que se deve ver – o óbvio. A minha
morte aponta para algum lugar, meu querido. O corpo pesado no chão e os pelos
macios são uma seta tesa e reta para uma porta fechada e um caminho sem volta.
A minha ausência crua e repentina
é a chave dessa porta.
Todos os carinhos me levam ao
céu. Agradeço-os todos. E sinto e guardo aqueles que recebi em vida e depois.
Guarda-os eles você também. O cheiro, o calor, o movimento, os dedos, os
dentes, a pele, os pêlos, as orelhas e mesmo o corpo estatelado. Tudo ali é
sentido: sentido, sentido e sentido.
Sem sentido, meu irmão, as coisas
não têm sentido.
Olha, entenda: há coisas que não
importam. O veneno fatal ou o atavismo mórbido. A minha solidão ou o escuro da
madrugada. A última vez que nos vimos ou as primeiras que nos encontramos.
Minto. As primeiras vezes em que
nos encontramos importam, sim. Importam justamente por causa da morte! Me
deitei no seu colo, no escuro, e dormi. Depois, por ter a casa e o quintal como
meus, deitei-me ali e dormi também. Da mesma maneira que cheguei, fui embora. E
assim é: a minha ida e a minha ausência.
Deixei uma porta aberta. Na
soleira, meu corpo desabado. Do outro lado, do lado de lá, mais adiante e mais
pra frente, depois do arco da porta, para além de onde se está, um passo a
mais, está o caminho sem volta. Esse caminho é um óbvio segredo. Faz sentido,
meu amigo. Confia em mim como confiei em você. É um segredo óbvio, não dito
ululante.
Mas observa a graça: a porta se
abriu e todos viram. Mas um deu as costas, outra permaneceu imóvel, a seguinte
deu um passo atrás e a última fechou os olhos com tanta força! Houve quem
quisesse fechar essa porta. Mas você espiou o outro lado. (Se fosse eu, teria
metido o focinho lá). E, aí, a porta não podia mais ser fechada.
Confia em mim como eu confiei em
você. Para lá, o caminho sem volta. A porta aberta trouxe vento, luz, calor,
insetos, cheiros. Pode ir, meu amigo. Eu já não volto. Nem você vai voltar. Eu
confiei a você a vida. Confia você agora na minha morte.
A vida vai. É ida. Vai. Só na
morte não há ir. Os que deram as costas, fecharam os olhos, se imobilizaram ou
deram passos para trás, não vão. Vai. E não volta. A minha morte na sua vida é
um caminho sem volta. A sua vida é o caminho sem volta. Vai, por isso. Eu já
não volto e já não vou. Vai, porém. Vai, portanto. Vai, conquanto.
A solidão é inevitável, mas não
se vive só. Pois, na vida, há sentido, pois, na vida, se comove.
__por: Gabriel Fonteles, Brasília, 29/03/2015.
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